O Anjo da Morte


Aline Mubarack


Todos os dias, tarde da noite, podia-se ver uma figura caminhando pelo vilarejo com uma capa esvoaçante e o andar silencioso, apesar das botas pesadas que calçava; caía uma neve espessa nessa época do ano. O jovem era alto e magro, pálido, com traços finos. Seus olhos de cor azul turquesa tinham algo de felino e assassino, como os de um lobo selvagem. Talvez por isso ele ousasse sair àquela hora da noite em um local tão ermo, terra de ninguém, onde muitos até afirmavam terem avistado vampiros, os seres malignos que se alimentavam de sangue humano.
Mikael dirigiu-se à única taverna do vilarejo. Aproximou-se do balcão e pediu uma dose de vinho. Não apreciava beber vinho de baixa qualidade, e tampouco apreciava o ambiente; mas por ali passavam viajantes e forasteiros. Se havia um bom lugar para se saber de tudo o que ocorria nas redondezas, era ali.
Assim que o vinho chegou, Mikael puxou para trás o capuz de sua capa, revelando cabelos negros levemente cacheados caindo-lhe pelos ombros. Aquele rapaz seria capaz de arrancar suspiros das donzelas, porém não dispunha de tempo nem de paciência para tais futilidades. Tinha uma missão.
Na mão enluvada, com que levou o copo à boca, havia um anel de prata com um símbolo engastado e uma enorme pedra azul. Parecia tratar-se de um anel de família. Na cintura, carregava uma pistola de cano longo; via-se o mesmo símbolo do anel marcado na coronha da arma.
Caçar vampiros não era uma ocupação naquela época. A maioria das pessoas do vilarejo e das fazendas nos arredores sequer imaginava que vampiros realmente existissem. Muitos acreditavam que eram apenas lendas. Somente as pessoas que tiveram a infelicidade de serem atacadas por tais seres, e sobrevivido, ou viram alguém sendo atacado, puderam constatar a veracidade da lenda.
Obviamente, o Conde que vivia na região despertava curiosidade e um certo medo em parte da população, mas ele era muito pouco visto e evitava manter contato com as pessoas fora de seu castelo.
Caçadores de vampiros eram forasteiros, ladrões ou assassinos contratados para matar algum vampiro específico, por vingança, e esse era o caso de Mikael. Não que ele tivesse sido contratado por alguém; pelo contrário, o contratante era ele mesmo, e tampouco era um ladrão, forasteiro ou assassino.
Enquanto bebericava seu vinho e olhava ao redor, o rapaz pensava em tudo o que havia acontecido e o quanto ele havia deixado de ser o garoto mimado e imaturo de algum tempo atrás.

Mikael havia morado em um castelo da pequena nobreza nas redondezas, junto com seus pais, uma irmã mais velha e um irmão mais novo. Ele estava sendo preparado para assumir a posição do pai, e isso implicava em muitas horas diárias de estudos, bem como compromissos sociais entediantes. Isso o aborrecia, pois ele preferiria passar horas explorando os arredores do castelo, sair para cortejar donzelas ou simplesmente vagabundear pelos enormes jardins.
Muitas vezes, quando o dia estava claro e ensolarado, algo um tanto raro para a região, da torre norte mais alta podia-se avistar outro castelo, ao longe com torres altas e obscuras, onde quase nunca se viam luzes.
Quando Mikael queria fugir de algum compromisso social aborrecido, subia à torre e lá permanecia por horas, olhando com curiosidade e interesse o outro castelo.
A família Heartgrave dominava a região; fora soberana por gerações, até que a hegemonia familiar fora ameaçada com a chegada de um misterioso Conde, que se instalara em um castelo abandonado há tempos. Com o tempo, um pacto de paz havia sido feito entre o tataravô de Mikael e o nobre, estabelecendo que uma família não se intrometeria nos negócios da outra, e em hipótese nenhuma algum membro da família Heartgrave poderia se aproximar do território vizinho, nem ousaria adentrar seu castelo.
O jovem nunca havia encontrado o tal conde, mas ouvira as lendas que circulavam sobre ele, inclusive a de que era um vampiro,
Tolice, vampiros não existem”, Mikael pensava. E, ainda assim, ele se sentia atraído pelo castelo, talvez mesmo pela proibição de se aproximar do lugar.
O pacto durara gerações, mas estava a ponto de ser quebrado.
Era uma sexta-feira. Mikael havia marcado um encontro com uma garota ao entardecer, nos portões de sua propriedade. A garota era linda; com seu jeito delicado, seus olhos azuis e cabelos loiros, arrancara suspiros do rapaz nos últimos dias. Nesse encontro ela havia dado a entender que, finalmente, lhe daria um beijo.
As aulas da manhã custaram a passar e o compromisso da tarde foi pior ainda. Aborrecido, Mikael acabou sendo rude com um dos convidados, e destratou seu pai diante das visitas. O rapaz sabia que tinha ido longe demais; tal comportamento lhe custaria caro. De fato, rendeu-lhe a ameaça de ser mandado para um colégio interno na Suíça.
O jovem esbravejou e saiu, batendo a porta atrás de si, com raiva. Foi até o estábulo, montou em seu corcel negro e partiu à toda, na tentativa de se acalmar. Mas não sabia que jamais retornaria para sua casa em uma situação normal, ou que nunca mais veria seu pai com vida. Se soubesse, certamente não teria lhe dito tudo o que dissera no calor da discussão.
Era uma tarde clara de sol e Mikael cavalgava velozmente, sentindo o sol e o vento em seu rosto. Ia sem rumo, sem dar-se conta de que, muito em breve, seu destino mudaria para sempre.
Quando Mikael deu por si, o cavalo havia parado diante de uma trilha estreita junto a uma floresta densa. O corcel relinchou e empinou, quando um vento gélido soprou, vindo da floresta e causando arrepios no jovem. Mesmo assim, ele se sentiu instigado a seguir pela trilha e o fez, após insistir com o cavalo, que teimava em querer retornar.
A floresta era espessa e sombria. Toda a luz e o calor do sol haviam se extinguido, como quando alguém apaga uma vela, deixando um cômodo frio e sem vida. Sons estranhos e sombrios emanavam a todo instante, assustando a montaria e seu cavaleiro. Por diversas vezes Mikael pensou em dar meia volta e retornar, mas uma estranha força fazia com que ele seguisse adiante, e era maior do que o medo que ele sentia. Quanto mais penetrava a floresta, a escuridão aumentava e uma densa névoa mal permitia que ele enxergasse o caminho por onde enveredara.
Depois de cavalgar durante um tempo que não soube estimar, o cavalo parou diante de um portão velho e enferrujado. Parecia que fazia muito tempo que alguém havia estado ali pela última vez. O rapaz apeou e o examinou até encontrar um cadeado, tão velho e enferrujado quanto o portão. Forçou-o e conseguiu abri-lo sem muito esforço.
Confirmando que o portão não era aberto há tempos, um forte rangido soou e fez com que alguns morcegos levantassem voo e passassem, em uma trajetória rasante, pelo jovem, que teve de abafar um grito. Seu cavalo deu meia-volta e disparou. Mikael ainda tentou segurá-lo pelas rédeas, mas o esforço foi em vão. Na dúvida se seguia o cavalo ou cruzava a entrada, ele decidiu ir em frente.
O portão dava para um jardim que também parecia abandonado, com mato crescendo por todos os lados. A sombra e a névoa, ali, eram mais espessas que na trilha. Foi então que ele olhou para cima e viu a sombra do imponente castelo. Mikael havia rompido o pacto, e mal sabia que os servos do Conde já haviam avisado seu amo.
Com medo das consequências de seu ato, o rapaz voltou para trás e saiu correndo, refazendo o caminho que tinha percorrido.
Quando estava já próximo da propriedade de seu pai, viu vários vultos negros saírem, voando, lá de dentro. As criaturas pareciam morcegos, mas eram enormes.
Ofegante, Mikael adentrou o castelo. O que viu mudaria sua vida para sempre: seus pais e seus irmãos estavam caídos no chão. Aproximou-se de sua mãe e afagou seu rosto pálido; não havia mais vida nela, não havia sangue, nem marcas de violência.
Somente quando ele se aproximou, para lhe beijar a face, notou um filete de sangue que escorria de dois furos em seu pescoço. Pareciam marcas de presas. Ao olhar ao redor ele percebeu que o pai e os irmãos estavam em situação semelhante.
As lendas eram verdadeiras. Vampiros existiam, e tal ato de crueldade só poderia ter vindo do Conde, como represália pela quebra do pacto.
Lágrimas banharam-lhe o rosto, misturadas a sentimentos de raiva, revolta, desejo de vingança. Naquele momento, sentiu cheiro de objetos queimados e ouviu uma gargalhada malévola. A propriedade estava em chamas.
Mikael enxugou as lágrimas, pegou o anel de família no dedo de seu pai e jurou ali, diante dos cadáveres de seus familiares, que vingaria a morte de cada um deles e que reconstruiria o legado da família Heartgrave.

Mais um caneca de vinho, senhor?
Não – Mikael sacudiu a cabeça, tendo sido trazido de volta à realidade.
Colocou algumas moedas sobre o balcão e deixou a taberna.
Ao sair do recinto, pôs o capuz sobre a cabeça e partiu em direção ao castelo do Conde. Nos anos que haviam se passado, tinha imaginado diversas formas de matar o vampiro, mas nenhum plano lhe parecia bom o suficiente; vinha sempre adiando o confronto, mas agora o momento chegara.
O jovem conferiu a arma, que estava carregada com três balas de prata. Isso significava que ele teria três chances de matar o adversário. No bolso de seu casaco havia dardos, com as pontas também revestidas de prata, apropriadas para matar outros vampiros que ousassem cruzar seu caminho.
Sorrateiramente, aproximou-se do castelo. Estava escuro, e o lugar parecia abandonado, mas ele sabia que não deveria se deixar enganar. O abandono aparente era apenas uma armadilha, pois, ao observar mais atentamente, perto do portão pôde observar duas sentinelas camufladas, guardando o local.
Mikael foi rápido: disparou dois dardos, acertando as sentinelas exatamente no coração. Uma por vez, morreram sem dar-se conta do que havia acontecido.
O rapaz ainda aguardou, alerta, para ver se haveria outras sentinelas, mas não viu mais ninguém. Então ele escalou o portão e percorreu o jardim à procura de um local de onde pudesse invadir o castelo sem ser visto. Avistou uma janela, que o levou a um corredor escuro.
Para qualquer mortal, encontrar o senhor daquele enorme castelo seria muito difícil, mas não para Mikael. Durante todos os anos em que se dedicava ao treinamento e à preparação física, havia estudado minuciosamente tudo que se sabia sobre o Conde. E aproveitara para matar outros vampiros, preparando sua vingança.
Mikael preparou sua arma e, com ela apontada, dirigiu-se até uma sala nos subterrâneos do castelo, onde encontraria o vampiro. A sala estava cheia de pó e ossadas, com um fogo quase morrendo, o que atrapalhava a visibilidade do recinto, ainda mais que a noite estava escura.
Mal adentrou a sala, um vulto parecia estar à sua espera.
O jovem havia treinado por anos e sabia que não poderia falhar, mas suas mãos tremiam e o nervosismo percorria todo seu corpo, acelerando seus batimentos cardíacos e deixando sua respiração pesada e irregular. A escuridão do lugar lhe dificultava a visão, mas, mesmo assim, ele atirou. E errou, ouvindo uma risada maléfica logo em seguida. De repente, o vulto reapareceu do outro lado da sala. O caçador atirou novamente, quebrando um espelho que se estilhaçou e o atingiu com cacos. Outra risada maléfica foi ouvida, lembrando-o de que só lhe restava mais uma bala, uma única bala, o que poderia significar viver ou morrer.
Mikael fechou os olhos, respirou fundo tentando acalmar-se e mantendo o foco em seu objetivo. Procurou trazer à mente a cena de seus familiares mortos e seu castelo se incendiando. Segurou a arma com firmeza e abriu os olhos novamente. Um raio riscou o céu, iluminando temporariamente a sala e revelando a criatura parada diante dele. Sem nem pensar muito, movido por instinto e por um sentimento de vingança que crescera cada vez mais, em todo o tempo em que ele havia se preparado, Mikael atirou.
O tiro foi certeiro no coração da criatura, que tombou instantaneamente, agonizando. Sem acreditar que tinha conseguido, o jovem atiçou o fogo da lareira e incendiou o lugar.
Mikael saiu do castelo, deixando no caminho um rastro de fogo e destruição. Finalmente, conseguira vingar a morte de seus familiares! E agora imaginava o que faria da vida... A sensação de tristeza e de vazio ainda permanecia em seu peito; a vingança não havia trazido sua família ou sua vida de volta.
Começava a amanhecer; os primeiros raios solares iluminavam o vilarejo. Mikael dirigiu-se novamente para a taverna. Poderia embriagar-se com vinho barato, na falsa tentativa de esquecer sua frustração.
Ao tomar a terceira caneca de vinho, ouviu dois viajantes, um tanto bêbados, conversando.
Um deles dizia que o Conde, senhor daquele castelo, e a quem chamou de Drácula, havia sido assassinado durante uma viagem: fora emboscado e morto ao voltar da Inglaterra. O outro retrucou que ouvira aquele boato, porém duvidava da morte do nobre, já que demônios como ele não morrem. Mas ambos comentaram que o Conde e seus servos deviam ter fugido, pois, naquela mesma noite, tinham avistado fogo e fumaça na propriedade amaldiçoada.
Mikael olhou para os homens, confuso. Era a primeira vez que ouvia chamarem o Conde pelo nome; o povo, supersticioso, sempre evitava nomeá-lo.
Quem ele havia matado, então? Quem havia sido morto na viagem?
Baixou o copo de vinho. Precisava estar com a mente clara, pois agora via que sua missão não terminara.
Quem era o verdadeiro Drácula? Seria um dos dois vampiros mortos realmente o Conde?
Saiu da taberna com o passo resoluto.
Precisaria de mais balas de prata.


© Aline Mubarack, 2013

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