Jornada em busca de Drácula


Solange Corregio

 Meu nome é Carla. Sou estudante de Letras, moro numa cidadezinha ao sul do Brasil; meus pais são descendentes de alemães, e por isso escolhi como segunda língua no curso o Alemão, com o qual já estava familiarizada.
Sou uma pessoa muito tímida, por isso amo escrever em meu diário e ler livros, principalmente os clássicos: são meus maiores passatempos. Meu sonho é me tornar escritora. O que vocês estão lendo agora é uma das páginas de meu diário, que escrevo para contar uma história muito louca que aconteceu comigo. Culpa dos livros e do meu pai.
Para começar, preciso falar um pouco sobre meu pai. Todos acham que ele é maluco (aliás, depois desta história, até eu começo a achar que isso é verdade), e seu passatempo é bem diferente do meu. Ele é inventor e o que vive fazendo são experiências com o espaço-tempo.
Certa vez ele afirmou que havia conseguido enviar um retrato de minha mãe, grávida para 1983, um ano antes de eu nascer; mas, um mês depois, encontrei o porta-retratos que ele supostamente havia transportado caído no chão de seu laboratório, o que me levou a crer que era mais uma de suas experiências falidas.
No entanto, tive de me convencer que ele havia descoberto como transportar não só objetos, como pessoas, no tempo e no espaço. Pois ao completar 28 anos, no dia 06 de novembro de 2012, ganhei de presente de meu pai uma viagem à Transilvânia do século XIX!
Eu estava, como sempre, escorada na árvore do jardim de nosso quintal lendo um exemplar de “Drácula” de Bram Stoker. Lia o último capítulo, em que Jonathan Harker enfiava uma faca no peito de Drácula. De onde me encontrava podia enxergar a janela do quarto do laboratório de meu pai, e o via indo pra lá e pra cá; às vezes percebia-se um clarão, vindo do local em que ele estava. Então eu interrompia a leitura e fitava a janela, para me certificar de que tudo estava bem (era comum acontecerem explosões durante suas experiências).
Num certo momento a luminosidade foi tão forte e ininterrupta que me levantei e me aproximei da janela do quarto, querendo ver o que estava acontecendo. Foi naquele momento que senti uma luz vir em minha direção, arremessando-me com força ao chão.
E então tudo começou.

Acordei sobre uma cama, num lugar que parecia uma hospedaria.
Uma senhora muito gentil colocava em minha testa um pano molhado; quando abri os olhos, saiu correndo.
-- Ela acordou! – falava uma língua que parecia diferente, mas que eu podia entender.
Depois de um tempo, chegou também um senhor que se aproximou da cama.
-- Você está bem? Nós a encontramos caída à porta do Hotel.
Percebi que falavam em alemão, e que por isso os entendia.
Que situação era aquela? Há alguns segundos eu estava junto à janela do laboratório de meu pai, e agora estava ali, deitada numa cama, usando um vestido de época – que, suponho, seja cortesia do hotel. Lembrava-me do impacto da luz e pensei que poderia estar num hospital. Mas não parecia ser o caso, ainda mais com médicos que falavam alemão! Resolvi então perguntar, e para isso me foram muito úteis as aulas de alemão.
-- Onde estou?
-- Você está na Hospedaria Coroa Dourada, em Bistritz...
Ao ouvir aquelas palavras, tudo perdeu a importância.
Não era possível! Eu sabia exatamente o que aquilo significava, mas não queria acreditar; nem me foi possível ouvir o que mais a senhora disse, pois minha mente começou a procurar uma explicação. Pensei estar sonhando, ou estar em coma num hospital, delirando com a leitura que estava fazendo sobre Drácula; então, pensei na possibilidade mais remota. Teria meu pai me enviado para 1897, a época do livro que estava lendo?
Lembrei-me de como fora parar ali, da luz vinda do laboratório e da mudança instantânea de ambiente. Resolvi ignorar tudo o que a senhora havia falado e continuar a conversa, para saber mais sobre essa nova situação.
-- Em que data estamos? – Perguntei.
-- Seis de Novembro de 1897.
-- Vocês conhecem algum Jonathan Harker?
Ela olhou para o rosto do senhor que estava ao meu lado; ambos mostraram uma fisionomia obscura, como se eu tivesse falado sobre algo proibido. Afinal, ele começou a contar.
-- Há pouco tempo tivemos um hóspede com esse nome, mas nunca mais se ouviu falar nele. Parecia um moço muito bom, porém foi ao encontro do mal. Você o conhece?
-- Não pessoalmente – respondi. – Vim procurá-lo, pois há pessoas preocupadas com ele. Podem me dizer que caminho tomou? Preciso segui-lo.
-- Isso já faz uns seis meses, e ele foi até o castelo de Conde Drácula, segundo o que se diz; tinha que tratar de negócios com ele. Parece que o Conde deseja comprar terras na Inglaterra.
Tudo me soou muito familiar, pois acabara de ler o livro que continha essa história; no entanto dei-me conta de que não trazia mais o exemplar do livro.
-- Vocês encontraram algum livro comigo? – indaguei.
-- Não – respondeu o senhor, e virou o rosto para senhora, que também balançou a cabeça em negativa.
A explicação talvez fosse de que o livro ainda não havia sido escrito, portanto, ainda não existia; por isso nem me preocupei em procurá-lo.
A senhora me perguntou de onde vinha, e resolvi dizer que era amiga de Mina, noiva de Jonathan, e que havia prometido a ela que o encontraria ou descobriria o que havia acontecido com ele. Ela comentou sobre o meu bom alemão, e que pensou que eu viera da Alemanha, por causa de minha aparência – a pele clara, olhos azuis e cabelos loiros. Comentou que por isso haviam iniciado a conversa comigo naquela língua, pois, embora falassem Romeno, naquela região as pessoas conheciam línguas variadas por causa de sua constituição de diversos povos. Expliquei-lhe a minha descendência para justificar o domínio do idioma.
Querendo saber mais sobre aquela situação, mudei o foco da conversa para Jonathan e continuei o interrogatório. Contudo, dessa vez queria informações mais consistentes, então fui mais provocativa.
-- Estou preocupada com o Senhor Harker. Ouvi dizer que esse Conde Drácula é misterioso e ameaçador, é verdade?
A senhora adiantou-se a falar, embora em sua voz eu pudesse perceber certo receio.
-- Há muitas histórias de pessoas que desaparecem naquele castelo. O Senhor Jonathan visitou-o justamente na noite de véspera do dia de São Jorge, quando os espíritos malignos ficam soltos; não era um bom presságio. Eu lhe dei um crucifixo para protegê-lo, quando ele entrou na diligência a caminho do castelo daquele monstro. Os hóspedes que estavam aqui, sabendo o que ele iria encontrar, fizeram figa para que o protegesse do mau olhado, embora não saiba se tudo isso ajudou. Temo que não, e até falei com o cocheiro: pedi-lhe que, se pudesse, evitasse que o jovem chegasse ao encontro, mas depois não falei mais com ele.
-- Será que eu poderia falar com ele? Talvez pudesse fazer o mesmo caminho do Sr. Harker, isso ajudaria a saber que rumo ele tomou.
-- Ele passará aqui à noite, como naquele dia, e fará o mesmo caminho. Deve chegar em algumas horas... mas, se eu fosse a senhorita, jamais iria àquele lugar, pois com certeza terá o mesmo fim de seu amigo – seja o que for que aconteceu com ele.
Enquanto esperava, aproveitei para anotar tudo que havia ouvido; no quarto onde os donos da Hospedaria me alojaram, encontrei um diário em branco, e pedi a permissão da dona do lugar para usá-lo. Aproveitei ainda para agradecer-lhe a hospitalidade, visto que não podia pagar-lhe.
Logo depois, comecei a registrar tudo o que ouvia. Encontrei também uma adaga, no quarto; peguei-a,pensando que poderia precisar dela para minha proteção. Sentia que os acontecimentos a seguir não seriam tão agradáveis... Mais tarde fui conversar com o cocheiro e contei-lhe o que me trazia a Bistritz (a segunda versão – a busca por Jonathan Harker) e passei a questioná-lo:
-- O que aconteceu naquele dia?
-- Cheguei aqui atrasado naquela noite, para levar o Senhor Jonathan. Ele estava nervoso, ansioso, e parecia não saber que estava indo para a casa do Mal. A dona da Hospedaria me advertiu disso, e ele notou que falávamos de sua pessoa. Achei que era bom que ele soubesse o que o esperava naquele castelo; e a certa altura da viagem, num terreno muito íngreme, quando os cavalos iam a passos lentos, o Sr. Harker quis descer e acompanhar a diligência a pé. Eu o preveni sobre os lobos, e para alertá-lo disse que veria muita coisa desse gênero antes de se deitar. Queria que ele tomasse cuidado naquele lugar, mas não podia ser tão claro. Aliás, não sei nem se deveria falar com a senhorita, porque aqui temos medo de falar nessas coisas. Nem sei como tive coragem de propor a ele que fosse conosco a Bucovina naquele dia, até que me adiantei de propósito para que ele perdesse a próxima carruagem e não fosse àquele lugar. Mas na hora que as luzes mostraram a carruagem do monstro, minha coragem fugiu por completo.
Enquanto eu e o cocheiro conversávamos, no hall de entrada da hospedaria, outro homem se aproximou e nos interrompeu.
-- Desculpe-me pela intromissão. Eu estava lá nesse dia, mas não vou me esquecer de que, ao sabermos que o Senhor Harker iria para aquele mausoléu, todos o presenteamos e fizemos o máximo para que ele levasse com ele algumas bênçãos de proteção. Quando chegamos a Borgo e vimos que a carruagem não viera, ficamos até felizes, só que aquela carruagem chegou sorrateiramente e nos deu um susto! Então ouvi a figura que levava a carruagem dizer que tinha cavalos velozes, e não pude me segurar. Soltei a frase “Denn die Todten reiten schnell”.
O dono da hospedaria, que ouvia nossa conversa por trás do balcão da recepção, repetiu aquilo que eu já compreendera:
-- “Pois a morte viaja depressa.”
O homem concluiu sua narrativa.
-- O olhar que ele lançou para mim, depois que falei, e aquele sorriso ameaçador, fez eu me arrepender até do que não havia dito. Por isso, todos preferiram se calar.
Após ouvir aquela história pela segunda vez, queria muito consultar o livro para comparar, mas não o tinha mais comigo. E pedi ao cocheiro que me levasse para fazer o mesmo caminho que Harker havia feito. O homem aceitou, embora soubesse que não podia pagar-lhe. Eu retribuiria de alguma forma.
A caminho de Borgo, pude apreciar a vista: bosques e florestas verdejantes e brilhantes à luz do sol, mas conforme a noite se aproximava e a estrada ficava mais sombria, percebi que haveria uma nevasca. Ao longe, era possível ouvir o uivo dos lobos e, num determinado momento, os cavalos começaram a cavalgar lentamente.
Lembrei-me do que o cocheiro tinha dito sobre Jonathan Harker, e como ele devia estar se sentindo naquele momento, sem saber o que o esperava. Senti um calafrio e comecei a acreditar que a história do livro era real, pois tudo tinha se confirmado... Talvez eu estivesse indo ao encontro da morte!
Porém, em vez de esse pensamento me impedir, atiçou ainda mais a minha curiosidade. Precisava saber se tudo era verdadeiro! Haveria mesmo um vampiro na Transilvânia? Segundo a história, naquele dia o Conde Drácula seria destruído. Lembrei-me de que, pela narrativa do livro, àquela hora a batalha deveria estar acontecendo; então pedi que o cocheiro me levasse ao Passo de Borgo, local do confronto final.
-- Minha senhora, eu não poderei deixá-la naquela região. Há uma estrada próxima, mas o horário não é propício para caminhadas – aconselhou o homem.
Insisti com ele e garanti que aquilo era extremamente necessário, eu sabia o que estava fazendo. Muito contra a vontade, o cocheiro me levou para a tal estrada.
Como na cena do livro, a neve começava a se precipitar. Desci da carruagem às pressas, para que o condutor não pudesse me impedir, sabia que ele tentaria – uma mulher sozinha na floresta, quase à noite, sob uma nevasca... não era algo normal.
Pulei da carruagem e corri, ouvindo os gritos dele.
-- Senhorita, volte!
Mas não lhe dei ouvidos. Segui o caminho que me havia indicado, o mais rapidamente que consegui, e quando me aproximava do local exato descrito no livro, ouvi o uivo dos lobos e os sons da batalha.
Diminuí a velocidade, precisava ser cautelosa.
Podia imaginar a cena tal qual fora narrada: Jonathan Harker puxando a faca e enfiando-a no coração do vampiro, o corpo virando pó.
Cheguei mais perto ainda. Os sons estavam mais altos, a batalha estava a poucos metros de mim, me escondi atrás de uma árvore. Sorrateiramente, olhei através dos galhos, e então presenciei a cena que jamais poderia imaginar ver um dia.
Ciganos lutavam por sua vida, os lobos atacavam... Mas não havia nenhum Jonathan Harker ou Mina, muito menos o Professor Van Helsing; havia apenas ciganos matando lobos e lutando para sobreviver. No momento em que eu me acomodara atrás da árvore, avistei um cigano com estatura maior que os demais, aparentava ser o chefe deles. O homem lutava com um lobo e outra fera se aproximava dele por trás, a poucos metros. Os demais ciganos não podiam ajudá-lo, o lobo se aproximava e então não pensei; tomei a adaga que trazia comigo e lancei-me em direção ao lobo, apunhalando-o pelas costas e derrubando-o.
Enquanto isso, o chefe do cigano eliminou o último dos lobos e voltou-se para mim com um olhar de estranhamento. Os outros se posicionaram atrás de seu chefe, e imaginei que minha morte seria inevitável. Não pelos dentes de um vampiro, mas pelas mãos de ciganos... Porém, o que se seguiu me surpreendeu.
O líder cigano começou a falar numa língua que eu não compreendia, com um tom amistoso.
Tentei me expressar em alemão, como me comunicara com os demais. Assim eles puderam compreender-me, e o homem perguntou:
-- Quem é você?
Contei-lhe toda a minha trajetória. Por incrível que pareça, sentia-me à vontade para narrar a versão verdadeira. Todos me ouviram atentamente, pareciam mesmo acreditar em tudo o que eu dizia.
Aproveitei para perguntar a eles sobre as lendas e mitos a respeito de vampiros; explicaram-me as origens das histórias, como nasceu a figura do vampiro e por que aquelas pessoas achavam o castelo um local assombrado por essa figura. Falaram também sobre Jonathan Harker, que realmente havia estado no Castelo do Conde Drácula a negócios e que havia ido embora há alguns meses, após alguns desentendimentos entre ele e o Conde. Dizia-se que algumas correspondências do Sr. Harker estavam sendo interceptadas por seu anfitrião, a fim de prolongar sua estada no Castelo por causa dos negócios. Enfim, tudo havia sido esclarecido e os próprios ciganos cuidaram para que as correspondências chegassem aos seus destinos; eventualmente, prestavam serviços ao Conde, que não costumava sair muito do castelo, fato esse que favorecia a difusão dos mitos.
Tomei nota de tudo o que disseram, com sua permissão. Por fim eles me acompanharam de volta à hospedaria, e o cocheiro ficou aliviado ao me ver. Já me havia dado como morta, assim como os demais a quem ele contara minha aventura!
De novo a dona do hotel deixou que eu ficasse instalada no mesmo quarto, porém dessa vez coloquei-me à sua disposição para trabalhar, e assim compensar a hospitalidade. Afinal, eu não sabia como iria sair dali – na verdade, não sabia com certeza nem como fora parar ali!
Nos dias que se seguiram, vivi como uma senhorita do século XIX. Tive a oportunidade de conversar com outras pessoas e reunir mais informações sobre vampiros,o Conde Drácula, Jonathan Harker e outros personagens. Num determinado dia cheguei mesmo a conhecer um senhor de nome Van Helsing, que me contou que havia ido para aquela localidade para pesquisar sobre vampiros! Coincidência ou não, anotei tudo o que ele disse sobre o assunto, o que não era pouco, e assim foi por trinta dias.
No dia 06 de dezembro de 1897, quando estava sentada no banco em frente à hospedaria, anotando algumas informações em meu diário, para não esquecer – já conformada de que iria passar o resto dos meus dias nessa época – um visitante misterioso sentou-se ao meu lado. Num primeiro momento não disse nada, apenas ficou observando-me escrever.
-- Você é escritora? – perguntou-me, em inglês.
-- Não, sou apenas uma curiosa – respondi, na mesma língua, que dominava um pouco.
Abri o diário e coloquei nas mãos dele, para que o examinasse. Ele leu as primeiras palavras.
-- Muito interessante. Sou escritor, meu nome é Bram...


De súbito, senti de novo uma estranha luz vir em minha direção, arrastando-me para longe... E assim terminou minha viagem ao século XIX. Da mesma forma como fui parar naquele tempo, voltei, exatamente trinta dias depois.
Imaginei que acontecera comigo o mesmo que com o porta-retratos de meu pai: por algum efeito inesperado de suas estranhas experiências, viajei e retornei sem que ele se desse conta do que acontecera. Na verdade, ele não percebeu que eu viajara, visto que às vezes passava dias em meu quarto a ler e a estudar...
O diário original ficou com aquele senhor, que nem ao menos terminou de dizer seu nome. Como pude imaginar, ele fez excelente uso de minhas anotações... Hoje não sou escritora, mas posso dizer que faço parte de uma obra prima da literatura. Bem, quem acreditaria nisso, não é mesmo?
Por isso deixo estas palavras registradas em meu novo diário. Quem sabe, um dia, poderei provar que são verdadeiras!



© Solange Corregio, 2013




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