Ele ainda será meu!


Giovana Santos Barbosa

      No alto, depois de se atravessar o vilarejo solitário e a floresta dos aterrorizantes lobos, via-se o castelo mais escuro e mais sombrio de todos. E ouvia-se a voz aveludada de uma mulher.
      – Ele ainda será meu! – dizia ela.
      Estava pronta a fazer de tudo para tê-lo. Tudo mesmo!

      Um pobre jovem, órfão, de nome Louis, morava na assustadora Transilvânia. Suas roupas eram rasgadas e extremamente sujas; seus cabelos, encaracolados e de um forte tom de vermelho, vibravam com a luz do sol. Vendia velas, sempre acompanhado por seu fiel burro acinzentado, e ia aos cantos mais horripilantes da região, até mesmo onde ninguém se atreveria a ir.
      Louis sempre ouvira várias histórias, contadas pelas irmãs do orfanato, sobre as criaturas bebedoras de sangue humano que moravam nos grandes castelos do local . Nunca tinha acreditado nesses tenebrosos mitos, e até, para tentar vender suas velas, costumava se aproximar bastante dos castelos; mas nunca entrara em nenhum deles.
      Certo dia, ao andar lentamente por um pequeno vilarejo, com seu amado burro, viu que as casas eram trancadas por gigantes fechaduras de ferro, e que havia enormes tochas e castiçais acesos com o fogo flamejando dentro de cada um deles, dia e noite. Não entendia por que tanta necessidade de proteção em um vilarejo tranquilo como aquele.
      Louis ouvira dizer que nos casarões próximos havia nobres moradores, ricos, que compravam qualquer tipo de coisa brilhante, até mesmo o que contivesse o fogo, então teve a ideia de ir vender suas velas por lá, apesar de as pessoas o aconselharem muito a não ir.

      – Meu querido Louis – dissera irmã Tereza, do orfanato –, você ainda tem muito que viver, fique conosco, não vá para onde você sabe que não ficará bem!
      Na última semana em que o jovem permaneceu no orfanato, ela insistiu, mas ele não a atendeu. Queria ir embora, ter uma casa para si, queria conhecer alguma jovem e casar-se com ela para formar a família que nunca tivera, e sempre sonhara ter.
      Então havia arrumado suas coisas, empacotado muitas velas para vender e poucos mantimentos, pois não conseguira muito dinheiro. Levara seu burro e um casaco que lhe doaram para que não sentisse frio, durantes as noites congelantes da Transilvânia; despedira-se de todos no orfanato, de irmã Tereza e de todas as crianças de lá.
      Os dias eram frios, é claro, porém tranquilos. As noites eram piores, pois ao deitar-se na pequena barraca, montada com gravetos e um grande tecido escuro, ouvia, no meio da noite, os lobos enfurecidos em sua caçada por alimento. Ouvia também gritos humanos que o faziam ter pesadelos todas as noites, e começava a lembrar as histórias contadas pelas irmãs.
      Ele vendeu mais velas naquela vila do que em toda a sua vida. Os donos das propriedades que visitou foram bastante simpáticos, compravam dúzias delas para ajudar o jovem Louis, e muitos ainda o deixavam ficar uma noite em seus quartos de hóspedes, oferecendo-lhe jantar e café da manhã.

      Foi então que ele encontrou o castelo, sem imaginar que poderia ficar sua vida inteira trancado lá. Era um dos castelos mais altos que já vira, com muitas janelas fechadas por grandes cortinas escuras: o único ponto de luz era no hall de entrada, onde havia uma só vela de cor esverdeada. Aquilo era sombrio, mas ao mesmo tempo era tão familiar... lembrava-o de alguma coisa que não sabia o que podia ser, como se já tivesse estado lá. Seria lembrança de algum sonho?
      Entrou no terreno, subiu o caminho até a porta de entrada e bateu lentamente três vezes, uma pancada de cada vez.
      A porta rangeu ao abrir-se, e ele viu que os móveis do hall eram clássicos. A um lado, uma poltrona com longas costas de couro vermelho; do lado oposto havia um armário com livros antigos que, mesmo de longe, dava para sentir que exalavam forte cheiro de mofo. No meio havia uma escada em espiral que provavelmente devia levar aos quartos e, ao fim da sala, via-se um corredor com várias portas fechadas.
      De umas das portas desse corredor saiu uma mulher. Pele branca, lábios vermelhos, cabelos negros, quase azuis. Sob seus olhos havia olheiras roxas, parecendo que não dormia há séculos; vestia uma saia plissada até os joelhos e uma camisa branca de linho.
      – Olá, querido, gostaria de alguma coisa? Quer se sentar, beber alguma coisa? Farei de tudo para vê-lo satisfeito – disse ela, com um sorriso amedrontador.
      – Senhora, eu agradeceria muito, mas estou aqui para vender minhas velas. Este lugar é meio abandonado, muito longe do resto da vila. – Mantinha-se afastado da mulher, que ainda não se apresentara.
      – Bem, para isso eu teria de chamar minha senhora, mas no momento ela está dormindo profundamente e não gosta de ser perturbada. Fique. Arrumarei um quarto para que você possa descansar. Desculpe-me, não me apresentei, meu nome é Aguines. Estou aqui para o que precisar.
      – Muito obrigado, chamo-me Louis. Não preciso de muita coisa. Deixei meu burro lá fora, só gostaria de um lugar em que possa pôr o sono em dia... E espero vender minhas velas.
      Aguines o levou para além da escada, onde realmente ficavam os quartos do castelo. Um grande tapete vermelho cobria todo o corredor; as portas eram feitas de madeira, pesadas e resistentes, e eram abertas por grandes chaves com um símbolo estranho.
      O quarto onde Louis ficaria também era forrado pelo mesmo tapete vermelho que o corredor. Ele viu uma cama de solteiro, perfeitamente arrumada com lençóis brancos, como se já o esperasse há algum tempo. Havia também uma lareira com o fogo já aceso e um guarda-roupas antigo, onde Aguines depositou suas velas e algumas roupas limpas para Louis.
      O rapaz ficou espantado com tanta gentileza. A senhora que o deixara entrar era extremamente cuidadosa, apesar de ele ainda ter um pouco de medo de seu sorriso e de seus olhos negros.
      – Agora que está acomodado, vou indo, tenho muito o que fazer. Mas, por favor, prometa-me que não sairá deste quarto à noite. Fique aqui, tranque a porta, e se precisar de alguma coisa é só dizer – e deixou o quarto, rapidamente, como se não pudesse respirar.
      Louis imaginou que a fumaça da lareira a incomodava; como irmã Tereza, ela também poderia ser alérgica a fumaça ou pó. Ao entardecer, foi chamado para o jantar. A sala de jantar era como o resto da casa: quase totalmente escura, com um tapete vermelho, móveis de madeira resistente, janelas com cortinas negras, tudo muito parecido – exceto pela enorme mesa com exatamente doze cadeiras, que ele contou uma a uma, e pelos quadros antigos retratando pessoas desconhecidas.
      Estava sozinho, e a mesa fora servida com um ensopado de alguma carne desconhecida. Como estava faminto, nem se preocupou em descobrir o que era, pois não entendia nada de cozinha.
      Sempre a sós, retirou-se para o quarto em que o hospedaram e deitou-se. Esquecera de tirar alguns objetos do bolso, como uma caixa de fósforos, e aquilo o incomodava. Mas o sono logo lhe veio e, mesmo pensando que estivesse acordado, já mergulhara em sono profundo. Fazia dias que não adormecia assim; quando se está na floresta é difícil dormir bem.
      De repente, ouviu a porta se abrir. Uma pessoa alta com vestimentas escuras a abrira e entrava no quarto. A lareira estava quase apagada.
      “Impossível eu não ter trancado a porta“ pensou ele, imóvel e entreabrindo os olhos.
      A pessoa que entrara, e que agora ele jurava ser uma mulher, talvez a senhora de Aguines, aproximava-se de sua cama com passos leves mas rápidos. Ele fingiu que dormia.
      Quando a mulher estava aos pés da cama, ele sentiu de novo o cheiro de mofo. Teve a impressão de ouvi-la murmurar algo como “Ele ainda será meu!”.
      Era a voz de Aguines...
      O fogo agora já não era mais nada; o quarto estava completamente escuro. Ele ouvia a respiração da mulher, que pensava ser Aguines, e seus olhos, já abertos, observavam-na aproximar-se mais e mais, um vulto no escuro. Até que ela parou junto à sua cabeça, a centímetros do pescoço.
      Aterrorizado, Louis pegou rapidamente a caixa no bolso e acendeu um fósforo. Então ele viu as presas gigantes dela, saltadas para fora da boca!
      Sim, realmente era Aguines, mas agora mais medonha do que nunca.
      O garoto se levantou em um pulo, e ela o segurou pelo braço esquerdo. Ele escapou para o armário onde estavam suas velas: acendeu uma delas com o pequeno fósforo que já queimava seus dedos.     Aguines se afastou rapidamente, mas não foi muito longe, até que Louis teve a ideia de jogar as velas sobre ela. Mais e mais velas.
      – Você ainda será meu, garoto , você ainda será meu! – gritava ela, ao correr loucamente para fora do quarto, com as roupas em chamas.
      Mas logo o sono pegou Louis novamente: ele desmaiou no grande tapete vermelho que cobria o quarto, cercado por todas as suas velas, agora espatifadas e quebradas.

      Louis acordou com um bocejo. O sol aparecia na pequena fresta entre a pesada cortina e a janela. Ele se levantou e, lembrando o acontecimento da noite passada, foi certificar-se de que a porta estivesse trancada.
      E estava. O castelo parecia completamente abandonado. Sem entender nada, o rapaz pegou suas coisas, carregou o burrico e deixou a propriedade.
      Tinha certeza, agora, de que tudo que acontecera não passara de um sonho .
      Mas Louis já estava bem distante do castelo, quando teve a impressão de que ouvia a mulher gritar.
      “Ele ainda será meu!”, dizia ela...



© Giovana Santos Barbosa


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